MARQUES, Luciana Pacheco – UFJF – lupmarques@uol.com.br
MARQUES, Carlos Alberto – UFJF – carlos.marques@pesquisador.cnpq.br
GT: Educação Fundamental / n. 13
Agência Financiadora: CNPq
As
obras de Paulo Freire e Vygotsky têm sido reconhecidas como uma
contribuição original e destacada ao pensamento pedagógico universal. De
origens diferentes, Paulo Freire, brasileiro, da cidade de Recife,
tendo vivido de 1921 a 1997; e Vygotsky, de Orsha, na Bielo-Rússia,
tendo nascido em 1896 e falecido em 1934, propõem questões que se
entrelaçam na direção de uma educação cidadã. Nossa questão se coloca,
então, da seguinte forma: Quais os pontos de aproximação entre as
teorias freireana e vygotskyana no que se refere ao processo pedagógico?
Paulo Freire é um
dialético.
Vygotsky
é um dialético. Um princípio básico das duas obras é o da educação como
uma prática ético-política. Conforme Gadotti (2002), Embora não se
possa falar com muita propriedade de fases do pensamento freireano,
pode-se pelo menos dizer que a influência do marxismo deu-se depois da
influência humanista cristã. São momentos distintos, mas não
contraditórios.
Como
afirma o filósofo alemão Woldietrich Schmied-Kowarzik, em seu livro
Pedagogia dialética, Paulo Freire combina temas cristãos e marxistas na
sua pedagogia dialético-dialógica. Paulo Freire é um dialético. A
educação é uma prática antropológica por natureza, portanto ético-política.
Por
essa razão, pode tornar-se uma prática libertadora. O tema da
libertação é ao mesmo tempo cristão e marxista. O método utilizado é que
é diferente, a estratégia é diferente. O fim é o mesmo. Encontramos
Hegel como referência desde o início. A relação opressor-oprimido lembra
a relação senhor-escravo de Hegel.
Depois
veio Marx, Gramsci, Habermas. Seu pensamento é humanista e dialético.
Inserido num contexto político e social de grande efervescência na
Rússia pósrevolução bolchevista, Vygotsky buscou fundamentar seus
estudos sobre o funcionamento intelectual humano nos pressupostos
marxistas então dominantes. Vislumbrou, pois, como relevante a aplicação
do materialismo histórico e dialético para a psicologia.
Nas
palavras de Cole e Scribner (1991, p. 7), Vygotsky viu nos métodos e
princípios do materialismo dialético a solução dos paradoxos científicos
fundamentais com que se defrontavam seus contemporâneos. Um ponto
central desse método é que todos os fenômenos sejam estudados como
processos em movimento e em mudança. Em termos do objeto da psicologia, a
tarefa do cientista seria a de reconstruir a origem e o
curso do desenvolvimento do comportamento e da consciência.
Um primeiro ponto de aproximação está na concepção de sujeito históricocultural
subjacente
às duas teorias. Para Paulo Freire é preciso considerar a realidade
social que está pautada na trama das relações e das correlações de
forças que formam a totalidade social. É preciso perceber as
particularidades na totalidade, porque nenhum fato ou fenômeno se
justifica por si mesmo, isolado do contexto social onde é gerado e se
desenvolve.
O homem e a mulher como seres sociais são capazes de agir, de representar sua
ação e expressá-la de modo objetivado. No momento de criar e recriar a realidade
procuram
representá-la. No entanto, o discurso que os homens e as mulheres fazem
da sua situação concreta é conflituoso, visto que o lugar que ocupam na
sociedade também o é.
Seus discursos são submetidos a pressões particulares de interesses de classes
sociais. Dessa forma, as representações ideológicas são determinadas pelas estruturas
das
relações sociais. É a unidade dialética que gera um atuar e um pensar
críticos sobre a realidade para transformá-la. A consciência crítica é
anárquica. Não poderá conduzir à desordem.
Entretanto, não é a conscientização que pode levar o povo a “fanatismos destrutivos”.
Pelo contrário, somente a conscientização poderá inseri-lo no processo histórico, como
sujeito, evitando os fanatismos e propiciando uma visão crítica da realidade, evitando,
assim, o medo da liberdade. No entender de Paulo Freire (2002, p. 24), “O medo da
liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que
não existe”.
O
compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com
a realidade e só assim ele é verdadeiro. A neutralidade frente aos
valores, ao histórico, ao mundo, acaba por refletir o medo que se tem de
revelar o compromisso contra os
homens, sua humanização, por parte daqueles que se dizem neutros.
Estão “comprometidos” consigo mesmo, com seus interesses e como este não é um
compromisso
real e verdadeiro, assumem uma neutralidade impossível. Faz-se
necessário reconhecer a humanização não apenas como viabilidade
ontológica, mas como realidade histórica. Humanização e desumanização
estão inseridas na história num contexto real, concreto e são
possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua
inconclusão.
Paulo Freire (1979, 2002) ressalta a importância e a necessidade de se entender a
existência
humana a partir de sua substancialidade, ou seja, o reconhecimento de
todos os homens como verdadeiros sujeitos históricos. Os atributos dados
aos seres humanos não podem, assim, sobrepujar o dado mais importante
da existência humana: a sua presença no mundo como sujeito.
Tomando como referência o ambiente cultural onde o homem e a mulher nascem
e
se desenvolvem, a abordagem vygotskyana entende que o processo de
construção do conhecimento ocorre através da interação do sujeito
historicamente situado com o
ambiente sociocultural onde vive. A educação deve, nessa perspectiva, tomar como
referência toda a experiência de vida própria do sujeito.
Vygotsky tornou-se o principal expoente da abordagem psicológica históricocultural,
que
concebe o sujeito socialmente inserido num meio historicamente
construído. Enquanto veiculador da cultura, o meio se constitui em fonte
de conhecimento. Vygotsky empenhou-se na busca do entendimento sobre os
mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte integrante da natureza
de cada ser humano.
Outro
estreitamento podemos encontrar na perspectiva interativa dos dois
autores, considerando o pressuposto básico da concepção freireana da
educação para a libertação como um processo de comunhão entre os homens e
as mulheres e a concepção interativa de desenvolvimento individual e
social como propõe a teoria vygotskyana.
No
pensamento de Paulo Freire, a relação sujeito-sujeito e sujeito-mundo
são indissociáveis. Como ele afirma (2002, p. 68), "Ninguém educa
ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si,
mediatizados pelo mundo". A relação autoritária e opressora entre as
classes e os grupos sociais é criticada por Paulo Freire. Segundo ele
(1998), a tomada de consciência pelo homem e pela mulher de seu
inacabamento constitui um dado fundamental no processo de libertação por
parte dos escravos da opressão: opressores e oprimidos. Assim como os
homens e as mulheres, a realidade também é inacabada, o que permite agir
no sentido da transformação de tudo e de todos.
Acreditar
na transformação do mundo pelo caminho freireano da comunhão é
acreditar na capacidade de todos os seres humanos alimentarem juntos o
ideal utópico da mudança: uma realidade onde opressores e oprimidos se
façam, de fato, livres dos elos aprisionantes do preconceito, da
discriminação e da injustiça.
Existem aqueles imbuídos do desejo de mudança: o oprimido e todos os que
acreditam
e percebem a utopia não como algo irrealizável, mas como o que Paulo
Freire (1998) denomina de “inédito viável”, algo que o sonho utópico
sabe que existe, mas que só será conseguido pela práxis libertadora.
Ao visualizar o inédito viável como um sonho, uma utopia, como algo que se
concretiza
no cotidiano, o homem e a mulher começam a desvelar a sua libertação
como realidade possível de ser alcançada. O estar no mundo significa
empenhar-se em ações, reflexões e lutas. O homem e a mulher oprimidos,
abstratos, a-históricos, passam a fazer parte do mundo, com uma
percepção consciente, crítica e participativa, o que representa sua
vocação ontológica.
Diz
Freire (2001, p. 85), Nunca falo da utopia como uma impossibilidade
que, às vezes, pode dar certo. Menos ainda, jamais falo da utopia como
refúgio dos que não atuam ou [como] inalcançável pronúncia de quem
apenas devaneia. Falo da utopia, pelo contrário, como necessidade
fundamental do ser humano. Faz parte de sua natureza, histórica e
socialmente constituindo-se, que homens e mulheres não prescindam, em
condições normais, do sonho e da utopia.
Vygotsky
afirma que construir conhecimento decorre de uma ação partilhada, que
implica num processo de mediação entre sujeitos. Nessa perspectiva, a
interação social é condição indispensável para a aprendizagem. A
heterogeneidade do grupo enriquece o diálogo, a cooperação e a
informação, ampliando conseqüentemente as
capacidades individuais.
As
relações sociais se convergem em funções mentais. Em relação ao
processo de formação da mente humana, Vygotsky (1991a) evidencia o
processo de internalização, que consiste em várias transformações:
a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é
reconstruída e começa a ocorrer internamente. (...)
b) Um
processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Todas
as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro,
no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas
(interpsicológica), e, depois, no interior da criança
(intrapsicológica). (...)
c) A
transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o
resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do
desenvolvimento. (p. 64) Assim, a partir da mediação do outro ocorre o
desenvolvimento dos níveis superiores da mente. Através da mediação a
criança se apropria dos modos de comportamento e da cultura,
representativos da história da humanidade.
Vygotsky afirma o desenvolvimento cultural como desenvolvimento social, mas
não no sentido literal do desenvolvimento das aptidões latentes e, muitas vezes, vindas
de fora. Mais freqüentemente, o deslocamento de estruturas do exterior para o interior:
uma
relação de ontogenia e filogenia diferente da ocorrida no
desenvolvimento orgânico. No desenvolvimento orgânico, a filogenia é
potencial e é repetida na
ontogenia.
No
desenvolvimento social, existe uma interação real entre filogenia e
ontogenia e essa interação constitui a principal força impulsionadora de
todo o desenvolvimento. A proposição da educação como um ato dialógico
por Paulo Freire e da linguagem como principal elemento mediador no
processo educacional por Vygotsky, traz como ponto comum a centralidade
do diálogo na ação pedagógica.
Paulo Freire defende a educação como ato dialógico, destacando a necessidade
de uma razão dialógica comunicativa onde o ato de conhecer e de pensar estariam
diretamente relacionados. O conhecimento seria um ato histórico, gnosiológico, lógico e
também dialógico.
Paulo Freire (1985) destaca o diálogo como a forma mais segura para a educação
e
a libertação de todos os homens e todas as mulheres, opressores e
oprimidos. A forma imperativa de transmissão do conhecimento,
característica do modelo tradicional, só faz, segundo ele, reforçar a
dominação cultural e política, impedindo a conscientização dos homens e
das mulheres.
Acredita
na arte do diálogo, na contraposição de idéias que leva a outras
idéias. Em sua teoria fica claro que o diálogo consiste em uma relação
horizontal e não vertical entre as pessoas envolvidas em uma relação.
De
acordo com Vygotsky (1991b), são estreitas as relações que ligam o
pensamento humano à linguagem, uma vez que os significados das palavras,
que são construídos socialmente, cumprem tanto a ação de representação
quanto a de generalização, o que permite a reconstrução do real ao nível
do simbólico. Essa reconstrução representa a condição de criação de um
universo cultural e a construção de sistemas lógicos de pensamento, que
possibilitam a elaboração de sistemas explicativos da realidade.
Do mesmo modo, essa dupla função permite a comunicação da experiência
individual e coletiva. Vygotsky (1991b, p. 131-132) conclui que:
A
relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo: o pensamento
nasce através das palavras. Uma palavra desprovida de pensamento é uma
coisa morta, e um pensamento não expresso por palavras permanece uma
sombra. A relação entre eles não é, no entanto, algo já formado e
constante; surge ao longo do desenvolvimento e também se modifica. (...)
As palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do
pensamento, mas também na evolução histórica da consciência como um
todo. Uma palavra é um microcosmo da consciência humana.
Vygotsky
(1991a) enfatizou a origem social da consciência, destacando a
importância da linguagem em seu processo de constituição.
A
consciência seria, portanto, dialeticamente formada na relação do
sujeito com o outro e com o mundo, ela é construída no contato social e
historicamente originada.
Existe
um caráter de dualidade na formação da consciência na perspectiva
vygotskiana. Nas palavras de Molon (2003, p. 86), Vygotsky “Enfatizou a
dualidade da
consciência, a idéia do duplo, confirmada na relação eu e outro na própria consciência,
ou seja, a consciência como um contato consigo mesmo garantida no contato com os
outros”.
A
concepção de consciência de Vygotsky leva a uma nova concepção de “eu”,
onde a vertente individual é construída a partir da base social como um
modelo da sociedade. Assim, só há eu no contexto com o outro, sendo
ambos (eu e outro) mediados socialmente.
É
nessa relação com o outro que as interações sociais se fazem
fundamentais na formação da consciência, onde interações sociais não são
entendidas apenas como as
interações imediatas entre as pessoas, mas também através de intersubjetividades anônimas.
A
consciência é compreendida como a capacidade do homem de refletir sobre
a sua própria atividade, de forma que ao refletir sobre a própria
atividade ele toma
consciência dela.
O
homem e a mulher são constituídos pela/na cultura e ao mesmo tempo
constituinte desta. É dessa forma, que a consciência possui, também, seu
caráter semiótico, sendo mediada pela linguagem. A relação entre o
significado e o referente é estabelecida pelo sujeito, de forma que esta
passa a ter um caráter singular, ou seja, depende de cada sujeito. A
importância atribuída pela linguagem no processo de formação da
consciência é entendida pela sua dupla função, de mediação dos
processos, funções e sistemas psicológicos e pelo seu caráter semiótico,
fazendo a relação entre o sujeito e o mundo (MOLON, 2003).
Para
falar da consciência, Paulo Freire parte das relações dialéticas
consciênciamundo. Para ele, consciência e mundo se dão simultaneamente,
não havendo uma anterioridade de uma em relação ao outro. A consciência é
relativa ao mundo e o mundo relativo à consciência. Isto implica que os
homens e as mulheres são consciência de si e do mundo. O homem e a
mulher são todo consciência.
A
consciência, na perspectiva freireana, está sempre intencionada ao
mundo, sendo sempre consciência de algo. Essa é a essência da
consciência. Assim, a consciência é dinâmica e não um “compartimento
vazio que se enche”, como propõe a educação bancária (FREIRE, 2002).
Simões
Jorge (1979, p.39-40) escreve que: Na reflexão de Paulo Freire sobre a
consciência, a consciência do mundo e a consciência de si vão crescendo,
juntamente, num movimento dialético. A consciência é, como consciência,
pelas suas relações com outras consciências: daqui que ela implica,
necessariamente, uma relação com outra
consciência.
É
a intersubjetividade das consciências. (...) É, pelo diálogo, que as
consciências se colocam na contemplação do mundo, vão ao mundo, e
comunicam-se. Neste sentido, para Freire o diálogo assume papel
fundamental na constituição da consciência, pois esta é essencialmente
dialógica pelas relações estabelecidas com os outros e com o mundo. No
diálogo, a tomada de consciência se transforma em conscientização. Para
Paulo Freire, é no diálogo e na comunhão que os homens e as mulheres se
conscientizam. O diálogo é a chave para a conscientização e a
humanização dos homens, das mulheres e do mundo. Nas palavras de Simões
Jorge (1979, p. 55),
Este
é, pois, o objetivo da conscientização: o homem, aprofundando-se na
realidade, conhecendo-a criticamente, assumindo consciência crítica da
mesma, se empenha em tornar mais humana esta realidade na qual e com a
qual ele vive através de atos seus. A conscientização se torna, assim, o
dado basilar na transformação do homem e do mundo, na libertação do
oprimido e na destruição da opressão. Por ela o homem e o mundo se
tornarão mais humanos: o mundo será, realmente, o mundo: o lugar de
encontro dos homens.
A
consciência do homem está, assim, “dentro do mundo”, havendo a
dialética homem-mundo. Os homens e as mulheres se conscientizam
mediatizados pelo mundo. A noção da construção do conhecimento de ambos
têm o mesmo ponto de partida e de chegada. Freire aponta como ponto de
partida as necessidades populares e Vygotsky, os conhecimentos
espontâneos; os dois apontam o conhecimento científico como ponto de
chegada.
Paulo
Freire aponta o conhecimento como produto das relações entre os seres
humanos e destes com o mundo. Os seres humanos devem buscar respostas
para os desafios encontrados nestas relações. Para isso devem reconhecer
a questão, compreendê-la e imaginar formas de respondê-la
adequadamente. Daí outras questões
se colocam e novos desafios aparecem. Assim se constitui o conhecimento, ou seja, a
partir
das necessidades humanas. Conhecer, na teoria freireana, é uma aventura
pessoal num contexto social. Paulo Freire aponta ainda o conhecimento
relacional. Diz ele (2001, p. 53):
O
envolvimento necessário da curiosidade humana gera, indiscutivelmente,
achados que, no fundo, são ora objetos cognoscíveis em processo de
desvelamento, ora o próprio processo relacional, que abre possibilidades
aos sujeitos da relação da produção de inter-conhecimentos.
O
conhecimento relacional, no fundo, inter-relacional, “molhado” de
intuições, adivinhações, desejos, aspirações, dúvidas, medo a que não
falta, porém, razão também, tem qualidade diferente do conhecimento que
se tem do objeto apreendido na sua substantividade pelo esforço da
curiosidade epistemológica.
Estou
convencido, porém, de que a finalidade diferente deste conhecimento
chamado relacional, em face, por exemplo, do que posso ter da mesa em
que escrevo e de suas relações com objetos que compõem minha sala de
trabalho com que e em que me ligo com as coisas, as pessoas, em que
escrevo, leio, falo não lhe nega o status de conhecimento.
Para
Vygotsky a relação entre aprendizagem e desenvolvimento remete ao
entendimento da relação entre os conceitos científicos e os conceitos
espontâneos da
criança. Para ele (1991b), o aprendizado se dá tanto na direção ascendente quanto na
descendente.
Na ascendência, o vetor indica a ação dos conceitos espontâneos,
abrindo caminho para os conceitos científicos, enquanto, na
descendência, indica a influência dos conceitos científicos sobre o
conhecimento cotidiano, fornecendo as estruturas para o desenvolvimento
ascendente do mesmo, sempre numa relação dialética.
Assim,
o conhecimento, tanto o científico quanto o cotidiano, é produção
cultural. Os conteúdos da experiência histórica do homem não estão
consolidados somente nas coisas materiais, mas, principalmente, nas
formas verbais de comunicação produzidas entre os homens. É através da
linguagem que se dá a interiorização dos conteúdos, pois ela faz com que
a natureza social das pessoas se torne também sua natureza psicológica.
A
escola tem como função educar para transformar a si mesmo e à
sociedade, contrariamente aos preceitos do modelo tradicional de ensino,
denominado de educação bancária por Freire e de velha escola por
Vygotsky.
Defensores
da inserção de todas as pessoas na história como agentes de
transformação, esses autores criticaram a verticalidade da relação
educador-educando,
na
qual o primeiro seria o detentor do saber e os demais os donos da
ignorância absoluta, incapazes, inclusive, de pensarem e de participarem
dos processos decisórios.
Os
educandos e as educandas, considerados seres da adaptação, deveriam se
ajustar aos modelos determinados pela ideologia dos grupos e classes
dominantes. O currículo neste tipo de educação é único, sendo utilizado
como forma de padronização na formação de mão-de-obra, o que cria uma
hierarquização de funções, contribuindo para a imposição de uma cultura
que não é a da massa popular.
Nossa
atual sociedade caminha rumo a uma educação inclusiva e diante do atual
contexto social dinâmico o ato educacional exige uma atitude programada
daquele que educa. Um verdadeiro ato educacional, para que alcance o
seu objetivo de formar um cidadão autônomo, competente e crítico, não
pode se limitar a uma simples relação de
ensino-aprendizagem.
É
necessário ter vontade de incidir ou intervir no processo de
aprendizagem do aluno, refletindo numa série de decisões de ordem
pedagógica, que envolva todo o processo educativo desde a elaboração do
currículo, até as práticas escolares da sala de aula. Assim, a atividade
de ensino-aprendizagem é conjunta, articulada, e determinada pela
interação entre os envolvidos e a partir do social.
Paulo
Freire (2002) critica a educação bancária, onde o professor e a
professora depositam os conhecimentos nos alunos e nas alunas
narrando-os e conduzindo-os à memorização mecânica dos conteúdos
narrados.
Em
suas palavras, Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação
dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda
numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a
absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação
da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.
O
educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas,
invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre
os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o
conhecimento como processos de busca. (p. 58) A “educação
problematizadora” ou “educação para a liberdade”, conforme propõe Paulo
Freire ocorre numa relação horizontal, onde educador e educando
estabelecem constante diálogo, para que o último tenha consciência de
que não apenas está no mundo, e sim, com o mundo, buscando transformar a
realidade. O respeito ao conhecimento prévio que o educando possui é de
fundamental importância, para que se possa propor, e nunca impor, o
que, e como será desenvolvido o trabalho em sala de aula.
Para
Paulo Freire (2002, p. 70), “A educação como prática da liberdade, ao
contrário daquela que é prática da dominação, implica a negação do homem
abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como também a
negação do mundo como uma realidade ausente dos homens”.
De
acordo com Gadotti (2002), cabe à escola na concepção freireana: amar o
conhecimento como espaço de realização humana, de alegria e de
contentamento cultural; cabe-lhe selecionar e rever criticamente a
informação; formular hipóteses, ser criativa e inventiva (inovar): ser
provocadora de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e
reconstruir conhecimento elaborado.
E
mais: numa perspectiva emancipadora da educação, a escola tem que fazer
tudo isso em favor dos excluídos. Não discriminar o pobre. Ela não pode
distribuir poder, mas pode construir e reconstruir conhecimentos,
saber, que é poder.
A
tecnologia contribui pouco para a emancipação dos excluídos se não for
associada ao exercício da cidadania. A escola deixará de ser
“lecionadora” para ser “gestora do conhecimento”. A educação tornou-se
estratégica para o desenvolvimento. Mas para isso não basta
modernizá-la. Será preciso transformá-la profundamente. (...) A escola
precisa dar o exemplo, ousar construir o futuro. Inovar é mais
importante do que reproduzir com qualidade o que existe. A matéria prima
da escola é sua visão do futuro.
Defende
Vygotsky (1991a, 1991c, 1991d) que toda e qualquer situação de
aprendizagem com a qual o aluno se defronta na escola decorre sempre de
fatos anteriormente vividos; o que o leva à conclusão de que os
processos de aprendizagem e de desenvolvimento estão relacionados desde o
nascimento da criança.
Nesse
sentido, o processo de aprendizagem se iniciaria muito antes de a
criança freqüentar a escola. Ressalta o autor, que o aprendizado
escolar, ou melhor, o aprendizado sistematizado produz algo
fundamentalmente novo no desenvolvimento da criança. Afirma ele (2001,
p. 456) que:
No
fim das contas só a vida educa, e quanto mais amplamente ela irromper
na escola mais dinâmico e rico será o processo educativo. O maior erro
da escola foi ter se fechado e se isolado da vida com uma cerca alta.
A
educação é tão inadmissível fora da vida quanto a combustão sem
oxigênio ou a respiração no vácuo. Por isso o trabalho educativo do
pedagogo deve estar necessariamente vinculado ao seu trabalho criador,
social e vital.
Vygotsky (2001) critica o ensino direto da velha escola, dizendo que este extirpa
toda
dificuldade do pensamento da criança, e esta tendência a facilitar
contraria os mais básicos princípios educativos. Afirma ele que até hoje
o aluno tem permanecido nos ombros do professor.
Tem
visto tudo com os olhos dele e julgado tudo com a mente dele. Já é hora
de colocar o aluno sobre as suas próprias pernas, de fazê-lo andar e
cair, sofrer dor e contusões e escolher a direção.
E
o que é verdadeiro para a marcha – que só se pode aprendê-la com as
próprias pernas e com as próprias quedas – se aplica igualmente a todos
os aspectos da educação. (p. 452) Na concepção vygotskyana cabe ao
professor e à professora serem os organizadores do meio social, que é
considerado por ele o único fator educativo. Exige-se deles que deixe
inteiramente a condição de estojo e desenvolva todos os aspectos que
respiram dinamismo e vida. Em todo trabalho docente do velho tipo
formavam se forçosamente um certo bolor e ranço, como em água parada e
estagnada.
E
aqui de nada servia a costumeira doutrina segundo a qual o mestre tem
uma missão sagrada e consciência de seus objetivos ideais (VYGOTSKY,
2001, p.449). Para Freire (2002), a chamada educação bancária constitui
um poderoso instrumento da necrofilia, na medida em que suprime o
direito fundamental de todo homem e mulher de agir em sua própria
história.
O
professor e a professora que utilizam práticas autoritárias agem
inferiorizando o ser, alimentando esse ciclo vicioso e fazendo com que a
relação dominante/dominado não se altere. Numa perspectiva contrária, a
educação libertadora proporciona ao indivíduo condições para atuar na
transformação de si e da realidade.
A
biofilia é o amor à vida, a essência da existência humana. O homem
nasceu para a vida e é sua vocação estar comprometido com ela,
refletindo sobre sua existência e sobre suas ações no e com o mundo para
humanizá-lo cada vez mais.
Para
Vygotsky (2001), os problemas da educação se resolverão quando se
resolverem as questões da vida. A vida só se tornará criação quando
libertar-se das formas sociais que mutilam, quando for um ritual
estético, quando surgir de um arroubo criador luminoso e consciente.
O
cenário do mundo Atual evidencia um movimento em direção a um sentido
de inclusão social: todos os seres humanos passam a dividir a cena,
coabitando os diversos espaços sociais. Nota-se, pois, um grande
dinamismo experimentado pelos sujeitos num mundo onde conceitos e
práticas assumem cada vez mais um caráter efêmero e de possibilidades
múltiplas.
O
reconhecimento do outro como protagonista do teatro da vida constitui o
vetor da mudança de paradigma. O reconhecimento e o respeito pela
diversidade é mais do que um simples ato de tolerância, é a afirmação de
que a vida se amplia e se enriquece na pluralidade.
O
que se almeja é uma sociedade baseada na eqüidade, na justiça, na
igualdade e na cooperação, que assegure uma melhor qualidade de vida
para todos sem discriminação de ninguém; que reconheça e assuma a
diversidade como o fundamento maior para a convivência social. Urge que
tenhamos uma mudança de mentalidade, onde todos participem da construção
desse novo modo de ser e de estar no mundo.
Assim,
ao tratar da inclusão deve-se levar em conta, sobretudo o não reforçar a
separação dos sujeitos, mas acolher e favorecer o relacionamento entre
todos. Para atingir este ideal, todas as comunidades deverão celebrar a
diversidade em suas atividades e procurar garantir que as pessoas possam
usufruir toda a gama dos direitos humanos: educacionais, civis,
políticos, sociais, econômicos e culturais.
Não
mais fundado no universal, o discurso atual passa a se constituir a
partir do dado do múltiplo, ou seja, da diversidade. Ser diferente não
significa mais ser o oposto do normal, mas apenas "ser diferente". Este
é, com certeza, o dado inovador: o múltiplo como necessário, ou ainda,
como o único universal possível.
Os pensamentos de Paulo Freire e Vygotsky vêm, em todos os sentidos, ratificar
o movimento de ruptura por que passa o mundo Atual em relação às práticas sociais de
exclusão. Compreender e assumir seus ideários significa posicionar-se integralmente no paradigma da inclusão.
Freire (1996) explicita esta posição ao afirmar:
O
que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne machista, racista,
classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor da natureza
humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou
históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude
sobre a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os
empregados.
Qualquer
discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se
reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser
gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de
brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando
exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber. (p. 67) Assim,
ler o mundo e compartilhar a leitura do mundo lido; a educação como ato
de produção, de reconstrução do saber, como prática de liberdade,
afirmando a politicidade do conhecimento são pressupostos pertinentes
tanto a Paulo Freire quanto a Vygotsky.
Entendemos, com base numa máxima freireana, que ninguém inclui ninguém;
ninguém se inclui sozinho; a inclusão decorre da união de todos na luta por uma
sociedade mais justa e mais solidária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COLE, M., SCRIBNER, S. Introdução. In: VYGOTSKY, L.S. A formação social da
mente. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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FREIRE, Paulo. Algumas reflexões em torno da utopia. In: FREIRE, Ana Maria Araújo.
Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001. p. 85-86.
______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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