"Ser educador é muito mais do que ser professor. Para ser educador, não basta conhecer teorias, aplicar metodologias, é preciso uma predisposição interna, uma compreensão mais ampla da vida, um esforço sincero em promover a própria autoeducação, pois o educador verdadeiro é aquele que, antes de falar, exemplifica; antes de teorizar, sente e antes de ser um profissional é um ser humano." (Incontri)


"É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática." (Paulo Freire)


"Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar e para convencer, para corrigir e para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e preparado para as boas obras” (2 Tm 3, 16-17)

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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Preconceito linguístico ou ensino democrático e pluralista?

Artigo
Data: 23/05/2011
Autor: Dante Lucchesi.
Dante Lucchesi é professor associado de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador do CNPq

Preconceito linguístico ou ensino democrático e pluralista?

Nos últimos tempos, a sociedade brasileira vem aprofundando seu caráter democrático, não apenas com a distribuição de renda promovida pela ação dos programas sociais do Governo Federal, como também no reconhecimento da diferença como parte do respeito à dignidade da pessoa humana. Hoje o racismo é tipificado como crime pelo Código Penal, e está em curso no Congresso Nacional um projeto de lei contra a homofobia. No plano da cultura, manifestações de matrizes historicamente marginalizadas, como a
africana, estão plenamente integradas, como os blocos afros no Carnaval da Bahia, a capoeira e o Candomblé. Porém, o preconceito e a intolerância ainda predominam em um plano essencial da cultura: a língua.

Nada mais revelador a esse respeito do que a comoção provocada pelo livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor, distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação (MEC), para a educação de jovens e adultos. A revolta se concentra em uma passagem do livro que diz que o aluno poderia dizer algo como “os livro”, em certos contextos, mas que deveria empregar a forma padrão “os livros”, sobretudo em situações formais para não ser vítima do preconceito linguístico.

Foi o suficiente para que políticos, jornalistas, intelectuais e professores manifestassem toda a sua perplexidade e indignação. Até uma procuradora do Ministério Público Federal, no melhor estilo udenista da Marcha com Deus pela Família, ameaçou com processo os responsáveis pela edição e pela distribuição do livro. Argumentou-se que, sendo a missão da escola ensinar a “forma correta”, não podia admitir o uso da “forma errada”; e que à escola cabia ensinar a norma culta, e não a popular. Chama a atenção, em primeiro lugar, o açodamento e leviandade de alguns posicionamentos, que revelaram que seus autores sequer se deram ao trabalho de ler o livro.

A obra, da autoria da professora Heloísa Ramos, baseia-se em princípios racionais e imprescindíveis para um ensino eficaz da língua materna, tais como o de que “falar é diferente de escrever”. E reconhece que o português, como qualquer língua humana viva, admite formas diferentes de dizer a mesma coisa, o que a ciência da linguagem denomina variação linguística. Informa ainda que a variação linguística reflete a estrutura da sociedade. No caso brasileiro, o cenário da variação social apresenta uma divisão entre uma norma culta e uma norma. O livro ainda alerta que, apesar de serem “eficientes como meios de comunicação”, as duas normas recebem uma avaliação social diferenciada, existindo “um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”, mas que “esse preconceito não é de razão linguística, mas social”. Em vista disso, conclui que “o falante tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”. Não há nada demais em tais afirmações. Os gramáticos mais esclarecidos reconhecem que o padrão da correção absoluta deve ser substituído pelo parâmetro da adequação relativa às diversas situações de uso da língua. É tão inadequado dizer “me dá menas tarefa” numa reunião formal de trabalho, quanto perguntar “poder-me-ia informar o preço desse vegetal?” em uma feira livre. Como diz ainda o questionado livro, “um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.

Informar ao aluno que a língua é plural e admite formas variantes de expressão, cada uma legítima em seu universo cultural específico, não é apenas a forma mais adequada de fazer com que o aluno conheça a realidade da sua língua, mas um preceito essencial de uma educação cidadã, fundada nos princípios democráticos, do reconhecimento da diferença como parte integrante do respeito à dignidade da pessoa humana. A pluralidade é o principal pilar de uma sociedade democrática, garantindo a diversidade de crenças, de opiniões, de comportamentos, de opções sexuais etc. Contudo, a diversidade linguística é vista sempre como uma ameaça, sem que as pessoas se deem conta do autoritarismo que tal visão dissemina.

A aceitação da diversidade linguística não entra em contradição com a necessidade da aquisição de uma norma padrão para uma melhor inserção em uma sociedade de classes, dominada pelo letramento. E inclusive o livro em questão se apresenta como um instrumento adequado desse ensino, com seus exercícios de pontuação, do uso canônico dos pronomes e até do emprego das sacrossantas regras de concordância, que ousou desafiar, tocando em uma aspecto nevrálgico da visão discricionária de língua que predomina na
sociedade brasileira. O reconhecimento da diversidade linguística, longe de ser prejudicial, é uma condição sine qua non para uma escola democrática e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno sem menosprezar sua bagagem cultural. A imposição de uma única forma de usar a língua, rechaçando as demais variedades como manifestações de inferioridade mental, é um ato de violência simbólica e mutilação cultural inaceitável.

Outro aspecto que chama atenção é o desconhecimento que predomina na sociedade sobre o ensino de língua portuguesa. Já há alguns anos que os livros didáticos contemplam a questão da variação linguística, e muitas escolas têm adotado essa visão mais pluralista e democrática de ensino de língua portuguesa com resultados muito positivos. Portanto, antes que se diga que a distribuição do livro é mais um ato de populismo do governo do PT, deve-se esclarecer que essa visão remonta ao governo FHC, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1997, que já diziam que “a imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre ‘o que se deve e o que não se deve falar e escrever’, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua” e alertavam que “o problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença”.

Portanto, só a ignorância ou a má-fé podem explicar as manifestações de indignação e revolta que beiram a histeria, diante da distribuição de um livro tão pertinente, através do sistema democrático e republicano do Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante disso, importa saber quais são as razões mais profundas dessas reações. Em primeiro lugar, a língua ocupa um posição sui generis na estrutura social. Em outras áreas do comportamento, as leis se seguem às práticas sociais. Na língua, ao contrário, as disposições governamentais, como no caso dos PCNs, estão muito à frente da visão dominante na sociedade, que é no geral dogmática e cheia de mitificações.

O linguista norte-americano William Labov fala do mito da Idade do Ouro, no qual as pessoas tendem a acreditar que a língua atingiu sua perfeição no passado e desde então só se tem deteriorado, e se afligem com as inovações que a cada dia ameaçam mais e mais a integridade do idioma, sendo as mais perigosas as violações perpetradas pela “gente inculta”. Porém, não se conhece uma única língua cujo funcionamento tenha sido comprometido pelas mudanças que sofreu ao longo de seu devir histórico. As mudanças que afetaram o chamado latim vulgar da plebe romana deram origem ao português de Camões, ao espanhol de Cervantes e ao francês de Flaubert. E as “deteriorações” sofridas pela língua portuguesa desde o tempo de Camões não impediram que Pessoa escrevesse sua magistral obra poética. Além do que, muitos males que afligem hoje a língua, para a decepção de muitos, não constituem grande novidade. Os puristas ficam horrorizados com a linguagem desleixada da Internet, impregnada de abreviaturas. Pois as abreviaturas abundam nas inscrições romanas e nos manuscritos medievais.

Costuma-se correlacionar também complexidade gramatical com grau de civilização. Porém, muitas línguas indígenas brasileiras exibem uma morfologia muito mais complexa, inclusive marcando certas categorias gramaticais, como a evidencialidade (que informa a fonte de conhecimento do evento verbalizado), absolutamente ausentes na gramática das línguas europeias. Já muitas línguas africanas, em sua maioria ágrafas (sem escrita), exibem um sistema morfológico de classificação nominal extremamente complexo. E algumas línguas da Melanésia, de comunidades tribais, têm mais de cem formas pronominais, contra algumas poucas dezenas das principais línguas europeias, que têm mais de mil anos de tradição escrita. Ou seja, complexidade gramatical não tem qualquer correlação com grau de civilização. Nem se pode pensar que complexidade gramatical implica maior poder de expressão da língua.

Outro grande mito é o da ameaça à unidade linguística: se não houver uma rígida uniformização, a unidade da língua se perde; se o caos da variação linguística não for detido, a comunicação verbal ficará irremediavelmente comprometida. Ao contrário, a heterogeneidade da língua é que garante a sua unidade em uma comunidade socialmente estratificada e culturalmente diversa. É a flexibilidade conferida pela variação linguística que permite a uma língua funcionar tanto na feira livre quanto nos tribunais de justiça. Se fosse um código monolítico e inflexível, como sugerem os puristas, a mesma língua não poderia funcionar em ambientes tão diversos, o que levaria inexoravelmente à sua fragmentação.

Impressiona o nível de ignorância que se observa em pleno século XXI em relação à língua. Qualquer pessoa minimamente informada já ouviu falar de Freud, Lévi-Strauss e Max Weber, tem alguma ideia sobre o que seja o Complexo de Édipo e o Tabu do Incesto e não ousa falar em raças superiores e inferiores, ou que um criminoso possa ser reconhecido pelo formato do seu crânio, mas fala com naturalidade de línguas simples e complexas e se refere a formas linguísticas correntes como aberrações. Aliás, a visão de que a forma superior da língua é aquela dos escritores clássicos é contemporânea do sistema de Ptolomeu, de que a Terra era o centro do Universo e, em torno dela, giravam o sol, os planetas e as estrelas. Ou seja, a Revolução de Copérnico não chegou ainda à língua.

Um exame aprofundado da questão revelará que as motivações históricas para tanto preconceito e mitificação decorrem exatamente papel político crucial que a língua desempenha nas sociedades de classe. Ao longo dos tempos, a língua tem constituído um poderoso instrumento de dominação e de construção da hegemonia das classes dominantes. A construção dos estadosnacionais encontrou na uniformização e homogeneização linguística um dos seus apoios mais eficazes, sobretudo em regimes autoritários e absolutistas. E o preconceito contra as formas de expressão das classes populares constitui um poderoso instrumento de legitimação ideológica da exploração desses segmentos. Na medida em que o preconceito viceja na ignorância, pode-se entender por que é tão importante impedir que uma visão isenta e cientificamente fundamentada da língua tenha uma grande circulação na sociedade.

Em um programa televisivo sobre o polêmico livro, um conhecido jornalista inquiriu uma entrevista alegando que a concordância gramatical seria
imprescindível para o raciocínio lógico. Se fosse assim, os norte-americanos, australianos e ingleses deveriam enfrentar dificuldades significativas, porque o inglês é uma língua praticamente desprovida de concordância nominal e verbal. Ao contrário, a grande maioria dos artigos científicos é escrita na atualidade em
inglês, e as universidades inglesas e norte-americanas figuram entre as melhores do mundo. Em inglês, se diz: I work, you work, he works, we work, you work, they work. Na linguagem popular do Brasil, se diz: eu trabalho, tu trabalha, ele trabalha, nós trabalha, vocês trabalha, eles trabalha. Nas duas variedades linguísticas, só uma pessoa do discurso recebe marca específica, mas o inglês é a língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do Brasil é língua de gente ignorante, que não sabe votar. Fica evidente que o valor das formas linguísticas não é intrínseco a elas, mas o resultado da avaliação social impingida aos seus usuários.

Ao contrário do que pensa o jornalista, a concordância não é um requisito para o raciocínio lógico. Até porque as regras de concordância são mecanismos gramaticais que não interferem na comunicação verbal, tanto que é indiferente dizer “nós pegamos os peixes” ou “nós pegou os peixe”. A informação veiculada é a mesma. Em função disso, esses mecanismos costumam ser muito afetados em determinados processos históricos como aqueles por que passaram o inglês, o português no Brasil e o francês, que, mesmo com a erosão na oralidade de suas marcas de concordância, não deixou de se tornar a língua de cultura do mundo ocidental no século XIX.

Porém, na recente história política deste país, a concordância teve uma posição de destaque, quando a imprensa conservadora questionava a capacidade do Presidente Lula, invocando, entre outras coisas, os seus “erros de português”. O preconceito linguístico nada mais era do que a expressão de um preconceito mais profundo das elites econômicas que não podiam admitir que um torneiro mecânico ocupasse o cargo de maior mandatário da República. O sucesso e as conquistas alcançadas pelo Governo Lula, tanto no plano interno quanto externo, só vieram a confirmar que, tanto um preconceito quanto outro, não tinham o menor fundamento.

Mas, vale tudo para desqualificar a linguagem popular, até dizer o disparate de que ela “é caótica e sem regras”, como afirmou, há alguns anos, uma jornalista da imprensa conservadora. Desde 1957, com as publicações dos trabalhos do linguista norte-americano Noam Chomsky, sabe-se que a Faculdade da Linguagem é uma propriedade universal da espécie humana, de modo que qualquer frase produzida por um falante de qualquer língua natural, seja ele analfabeto ou erudito, é gerada por um sistema mental de regras tão sofisticado que mesmo o computador mais poderoso já produzido é incapaz de fazer o que qualquer indivíduo faz trivialmente: falar sua língua nativa.

Nesse contexto, é possível compreender o quanto é subversivo (ou seja, transformador) distribuir amplamente um livro didático que reconhece a diversidade linguística e a legitimidade da linguagem popular. É muito revelador o depoimento do eminente gramático Evanildo Bechara, divulgado no portal UOL, na Internet, em 18/05/2011. Numa crítica à orientação dos PCNs, que ele considera um "erro de visão", afirma: “Há uma confusão entre o que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade de um objeto para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula. O indivíduo vai para a escola em busca de ascensão social”. É impressionante que se diga que “não cabe em sala de aula” fornecer elementos para o aluno “compreender [a língua] como [ela] é”. É como dizer que o darwinismo não cabe em sala de aula, devendo o ensino da biologia ser orientado pelos princípios do criacionismo. Acenando com a cenoura da “ascensão social”, Bechara quer limpar o terreno do ensino para os normativistas legislarem arbitrariamente sobre a língua, como têm feito até então. A visão científica da língua, que reconhece a variação e a diversidade linguística como propriedades essenciais de qualquer língua viva, deve ficar hermeticamente confinada aos ambientes científicos. Na escola e na sociedade, deve predominar a visão dogmática e obscurantista de que existe uma única forma de falar e escrever, enquanto as demais devem ser vistas como deteriorações produzidas por mentes inferiores.

Os problemas dessa visão dogmática e discriminatória do ensino de língua portuguesa se agravam com a tensão que existe no país em relação à norma de correção linguística. O linguista Marcos Bagno tem demonstrado que estruturas como “o jogador custou a chutar” e outras que os gramáticos tardicionais e midiáticos, como Pasquale Cipro Neto, afirmam não pertencer à norma culta são recorrentes nos textos de escritores consagrados, como Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, ou mesmo de clássicos, como Machado de Assis e José de Alencar. Isso demonstra que, no Brasil, existe um desacordo flagrante entre a norma padrão – modelo ideal de língua usado como critério para a correção linguística – e a norma culta – forma da língua concretamente usada pelas pessoas consideradas cultas, advogados, jornalistas, escritores etc. Ao empregar as duas expressões como sinônimas, Pasquale e os normativistas buscam dar às suas prescrições uma legitimidade que elas não têm, porque se apoiam numa equivalência que está longe de existir.

A tensão entre a norma padrão e a norma culta é normal em qualquer sociedade letrada, na medida em que a norma padrão constitui uma forma fixa e idealizada de língua a partir da tradição literária, enquanto a norma culta, constituída pelas formas linguísticas efetivamente em uso está sempre se renovando. Porém, no Brasil o desacordo entre as duas é grave desde as origens do estado brasileiro. A independência política do Brasil, ocorrida em 1822, desencadeou uma série de manifestações e movimentos nacionalistas, que tinham no índio tupi o grande símbolo da nacionalidade. Contudo, escritores que abraçaram a temática indigenista e nacionalista que tentaram adequar a linguagem portuguesa à nova realidade cultural do Brasil, como José de Alencar, foram alvo de virulentas críticas provenientes do purismo gramatical.

Mais uma vez, a língua se descolou dos demais aspectos da cultura. Se os elementos representativos da brasilidade deveriam ser adotados, derrubando os símbolos da velha ordem colonial, a linguagem brasileira era vista como imprópria e corrompida, devendo continuar a prevalecer a língua da antiga Metrópole portuguesa. A vitória dos puristas representou a vitória de um projeto elitista e excludente na formação do estado brasileiro. E a base racista desse projeto fica clara neste trecho do discurso de Joaquim Nabuco, na sessão de instalação da Academia Brasileira de Letras, em 1897:

A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós; devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las indo a eles. (...) Nesse ponto tudo devemos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época (...) Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano ou Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira.

A vassalagem linguística à ex-metropole implicou a adoção do modelo da língua de Portugal na normatização linguística no país, com graves conseqüências, como o generalizado sentimento de insegurança linguística que aflige todos segmentos da sociedade brasileira, mesmo os mais escolarizados. É comum ouvir afirmações do tipo “o português é uma língua complexa”, ou “o brasileiro não sabe falar português”. E não poderia ser diferente porque a tradição gramatical brasileira exige que os brasileiros escrevam, ou até mesmo falem, com a sintaxe portuguesa, o que é impraticável, porque a língua não parou de mudar, tanto em Portugal quanto no Brasil, em um processo que, por vezes, assume direções distintas, ou mesmo contrárias, em cada um dos lados do Oceano Atlântico.

Uma das mais notáveis dessas mudanças foi a violenta redução das vogais átonas da língua em Portugal, fazendo com que os portugueses pronunciem telefone como tlefone, o que confere ao português europeu contemporâneo uma sonoridade, que é menos românica do que germânica, ou mesmo eslava. Já no Brasil pronuncia-se téléfoni ou têlêfoni (consoante a região), tendo ocorrido o inverso: o fortalecimento das vogais pretônicas. Essa mudança acabou por repercutir em outros níveis da estrutura da língua, de modo que em Portugal se generalizou o uso da ênclise, até nos casos em que, na língua clássica, era obrigatório o uso da próclise (e.g., O João disse que feriu-se; Não chegou-se a um acordo), enquanto no Brasil emprega-se normalmente a próclise até nos contextos vedados pela tradição (e.g., Me parece que ela não veio).

Para além da insegurança linguística, a adoção de uma norma adventícia no Brasil produz também verdadeiros absurdos pedagógicos. Toda gramática normativa brasileira tem um capítulo dedicado à colocação pronominal, que se inicia invariavelmente com a afirmação “a colocação normal do pronome átono é a ênclise”; ao que se seguem mais de vinte regras indicando onde se deve usar a próclise (em orações subordinadas, depois de palavras negativas, após alguns advérbios etc). Tal gramática serve a um estudante português, que usa normalmente a ênclise e pode aprender quais são os contextos excepcionais onde a tradição recomenda o uso da próclise, mas não tem a menor serventia para um estudante brasileiro, que já usa normalmente a próclise. Para ter algum valor pedagógico, o texto da gramática brasileira deveria ter a seguinte feição: “a colocação normal do pronome átono no Brasil é a próclise; entretanto, para se adequar à tradição, deve-se evitar essa colocação em início de período e após uma pausa”.

Esses equívocos se exacerbam dentro da visão tradicional que restringe o ensino de língua portuguesa à prescrição do uso de formas anacrônicas, quando o ensino da língua deve ser muito mais amplo que isso, concentrando-se em práticas criativas que capacitem o aluno a produzir e interpretar textos, dominar os diversos gêneros textuais e identificar os mais variados sentidos e valores ideológicos que as produções verbais assumem em cada situação específica; ao que se deve somar uma informação propedêutica acerca da diversidade da língua.

Pode-se entender, assim, porque uma entidade conservadora e anacrônica, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), se juntou às vozes recalcitrantes, criticando o livro de português do MEC em uma nota oficial, na qual afirma: “Todas as feições sociais do nosso idioma constituem objeto de disciplinas científicas, mas bem diferente é a tarefa do professor de língua portuguesa, que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da língua padrão que ministra a seus discípulos”. Mais uma vez, a ladainha de que
a escola e a sociedade devem ser privadas de uma visão científica (ou seja, realista) da língua, ficando à mercê de toda a arbitrariedade normativista, inclusive aquela que impõe uma norma de correção adventícia e absolutamente estranha à realidade linguística do país.

Fica evidente também que essa virulenta reação ao livro de português do MEC não se justifica como defesa de um ensino mais eficaz de língua portuguesa. Um modelo antiquado, que privilegia a imposição de formas linguísticas adventícias e/ou anacrônicas, está longe de ser o mais eficaz. Não é a correção de “assistir o espetáculo” por “assistir ao espetáculo” que vai fazer o aluno escrever melhor. Um ensino eficaz de língua materna incorpora a bagagem cultural do aluno, promovendo uma ampla prática de leitura e produção de textos nas mais variadas situações de comunicação, desenvolvendo também sua capacidade de reconhecer os diversos sentidos e valores ideológicos que a língua veicula em cada situação. Nesse ensino, é imprescindível promover a consciência acerca da diversidade linguística como reflexo inexorável da variedade cultural. E esta formação cidadã para o respeito à diferença não entra em contradição com o ensino da norma culta, que deve permanecer. O que está em jogo, na verdade, é a opção por um ensino discriminatório e arbitrário, baseado no preconceito e no dogma, ou por um ensino crítico e pluralista, baseado no conhecimento científico acumulado até os dias de hoje, como ocorre na física, na matemática, na geografia, etc. Por que se deve privar os alunos do conhecimento científico da língua, reduzindo a disciplina língua portuguesa a um mero curso de etiqueta gramatical?

Se o projeto purista venceu no século XIX, com as nefastas conseqüências que hoje se descortinam, resta saber se, no limiar do século XXI, a sociedade brasileira perpetuará o velho projeto arbitrário e conservador, ou encampará um projeto democrático e pluralista para o ensino de língua portuguesa, em consonância com que o corre em outros planos da cultura. Será que mais uma vez a língua restará isolada, como terreno do dogma e do preconceito?

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